Horas antes de se tornar conhecido em todo o Mundo ao partir a pontapé a parte de baixo da porta do seu vizinho Ariel Castro, permitindo que Amanda Berry rastejasse para fora do imóvel onde viveu sequestrada entre os 16 e os 27 anos, Charles Ramsey tentou que uma menina de seis anos parasse de chorar. "Quero o meu papá!", gritava Jocelyn, pela primeira vez fora de casa na companhia da mãe, enquanto centenas de residentes na avenida Seymour, em Cleveland, começavam a aperceber-se de que nunca mais iriam esquecer-se do que decorria à porta do número 2207 no dia 6 de maio.
Numa entrevista ao jornalista da CNN Anderson Cooper, Ramsey realçou o quanto ficou chocado ao ouvir da assustada Amanda Berry que a menina de traços "hispânicos" - assim a descreveu na chamada para a linha de emergência - era filha do vizinho, motorista de autocarros escolares de 52 anos, que raptou três jovens entre 2002 e 2004, mantendo-as em cativeiro ao longo de uma década. "Disse-lhe: ‘Como é que isso é possível? Estava sequestrada e ele fazia sexo consigo? Jesus!'", recordou o lavador de pratos, de 43 anos, que se tornou um fenómeno na internet e foi visto como um herói ao mesmo tempo que via repetidas e parodiadas frases como "percebi logo que algo estava errado quando uma rapariga branca bonita veio a correr para os braços de um negro".
A criança, que terá sido a única a nascer das violações - o raptor provocou vários abortos a Michelle Knight, sua primeira vítima, sequestrada em agosto de 2002, aos 20 anos -, está de boa saúde física, mas nenhum especialista se atreve a prever o efeito dos primeiros seis anos no resto da sua vida. Não é claro se foi abusada pelo homem que os testes de ADN confirmam ser o seu pai, ou se assistiu a abusos cometidos sobre a mãe ou qualquer outra das desaparecidas de Cleveland - a terceira é Gina DeJesus, que tinha 14 anos em abril de 2004, quando foi levada para a casa.
Certo é que Amanda se encarregou de dar aulas à filha e que a criança era a única a poder sair de casa, acompanhando o ‘Monstro de Cleveland' a parques infantis, restaurantes de fast-food e mesmo a casa da avó. A todos quantos estranhavam a sua presença - incluindo os tios Pedro e Onil, que chegaram a ser detidos por suspeita de envolvimento nos abusos -, Ariel limitava-se a dizer que a menina era filha de uma namorada. Conheceram-lhe algumas desde 1996, quando Grimilda Figueiroa (falecida no ano passado), a esposa e mãe dos únicos filhos que se lhe conheciam até agora, fugiu de casa e pediu o divórcio, após um espancamento mais intenso do que era habitual.
O "imenso amor" por Jocelyn do homem que enfrenta quatro acusações de rapto e três de violação, colocado em prisão preventiva com uma inacessível fiança de oito milhões de dólares (6,2 milhões de euros), foi sublinhado pelos advogados que aceitaram defendê-lo. Craig Weintraub e Jay Schlachet revelaram que o cliente irá declarar-se inocente, acusando a comunicação social e a comunidade de "demonizarem o homem antes de conhecerem todos os detalhes da história".
PRISIONEIRAS DE GUERRA
Os detalhes já revelados sobre aquilo que as autoridades encontraram na casa fazem com que a tarefa dos advogados pareça utópica. Fontes ligadas à investigação relataram à agência Reuters que a cave onde as mulheres eram mantidas tinha correntes nas paredes e trelas de cão penduradas no teto. As vítimas eram manietadas durante longos períodos e daí resultaram lesões muito graves, sobretudo em Michelle Knight e Gina DeJesus, a qual terá dificuldades em mexer a cabeça.
"Quando ele se ausentava bastante tempo, por vezes cobria a cabeça das mulheres com fita adesiva, incluindo os olhos, deixando apenas espaço para poderem respirar. E depois retirava a fita bruscamente, arrancando pele e cabelo", garantiu um dos envolvidos na investigação do caso, comparando as mulheres, de cabelo quase rapado, a "prisioneiros de guerra".
Não será apenas por acaso ou por recato que, ao contrário de Amanda Berry, que surgiu sorridente numa fotografia com a irmã e a filha, ainda não houve aparições públicas de Gina DeJesus e Michelle Knight. A primeira, que tem agora 23 anos, cobriu-se com uma camisola ao ser levada para casa dos pais - de onde evita sair sequer para o quintal, o que levou a polícia de Cleveland a pedir que os helicópteros das televisões se afastem -, enquanto a segunda só pôde sair do hospital quatro dias depois do resgate.
Alcunhada de ‘sequestrada esquecida', Michelle Knight terá sido o principal alvo da violência. A mulher de 32 anos precisará de cirurgia maxilo-facial e terá ficado com problemas de audição ao ser utilizada como uma espécie de ‘saco de pancada' em que Ariel Castro descarregava toda e qualquer fúria. Também foi à mais velha das vítimas que provocou vários abortos, com sucessivos murros na barriga.
A única criança que veria nascer durante o cativeiro seria Jocelyn, servindo de parteira a Amanda Berry em condições que desafiam a imaginação. Foi dentro de uma piscina insuflável que fez o parto, enquanto ouvia ameaças de morte certa se algo corresse mal. E quase correu, pois a bebé teve de receber respiração boca a boca.
A aparente diferença de tratamento reservado a Amanda - que passava mais tempo na parte de cima da casa, enquanto Gina e Michelle eram mantidas sobretudo na cave - permanece uma das muitas incógnitas do caso. Embora não subsista a menor dúvida de que a mulher desaparecida na véspera do 17º aniversário queria fugir, arriscando tudo ao chamar a atenção dos vizinhos.
CONTINUAR A VIDA
Para a jovem que correu para os braços de Charles Ramsey, deixando para trás uma década de sofrimento, a vida já começou a avançar. Mas não com os passos mais fáceis, pois uma das suas prioridades foi visitar a campa da mãe, Louwana Miller, falecida em 2006, após ser hospitalizada com uma pancreatite. Na sua família ninguém duvida que a morte prematura da mulher de 43 anos se deveu ao desgosto de não saber o destino da sua filha adolescente.
Instalada em casa da irmã, Beth Berry Serrano, residente em Cleveland, Amanda poderá recomeçar a vida a centenas de quilómetros. É na cidade de Elizabethtown, no estado vizinho do Kentucky, que vive o pai e grande parte da família.
Para Gina DeJesus, a mais nova das três vítimas de Ariel Castro, o primeiro passo foi o regresso à casa da família, que sempre acreditou que a reencontraria. No entanto, a mãe da jovem, Nancy Ruiz, disse no programa televisivo ‘Good Morning America' que a filha chegou a dizer que não queria separar-se das colegas de infortúnio.
Mais complicada é a vida de Michelle Knight, tal como já era ainda antes do rapto. Engravidou após ser violada e teve um filho, que lhe seria retirado pelo serviço de menores do Ohio meses antes do rapto. Esse facto, e os 21 anos que já tinha em 2002, contribuíram para que não chegasse a ser colocada na lista de desaparecidas. E aumentou o ressentimento em relação à mãe, que vive agora no estado da Florida, pelo que só permitiu a visita do irmão, que fugira ainda adolescente devido a maus-tratos.
Chegou a admitir-se que Michelle seria ‘adotada' pela família de Gina DeJesus. No entanto, essa hipótese, levantada pela matriarca da família de origem porto-riquenha, foi afastada. A mulher que ficou mais anos no número 2207 da avenida Seymour encontra-se noutro local, que não foi revelado para tentar assegurar a sua privacidade.
NUDEZ NA CELA
Depois de ouvir críticas por não ter feito o suficiente para descobrir as três mulheres, o Departamento de Polícia de Cleveland divulgou o relato do primeiro agente a entrar na casa na sequência dos telefonemas de Charles Ramsey e Amanda Berry. Anthony Espada confirmou que a mulher com uma menina ao colo era a jovem cuja fotografia vira incontáveis vezes, mas chegou a pensar que não havia mais ninguém no imóvel. Subiu os degraus e deparou-se primeiro com Michelle Knight, que gritou "salvaste-nos!" ao saltar para os seus braços, segundos antes de Gina DeJesus sair de um quarto. "Fiz tudo para não me deixar levar pela emoção", disse, admitindo que chorou várias vezes no local. Não foi o único a fazê-lo entre os seus colegas.
Pouco depois seria capturado Ariel Castro, o motorista que perdera o emprego meses antes por deixar o autocarro com as portas abertas a dois quarteirões de sua casa. Renegado até pelos irmãos Pedro e Onil, que temem represálias apesar de terem sido ilibados e dizem esperar que ele "apodreça no Inferno", o ‘Monstro de Cleveland' encontra-se sob permanente vigilância na cela, para evitar que cometa suicídio. Tem sido observado a passear--se nu ou a contemplar-se ao espelho enquanto espera pela confirmação de que o procurador avançará com uma acusação de homicídio pela forma como provocou os abortos. Se assim for, arrisca a pena de morte.
HERÓI DE HAMBÚRGUER NA MÃO RECUSA A RECOMPENSA
Charles Ramsey anunciou que recusará qualquer recompensa por encontrar Amanda Berry, dizendo que o dinheiro deve ser dividido pelas vítimas de Ariel Castro, mas é pouco provável que o vizinho mundialmente famoso vá continuar a lavar pratos. Convidado para programas de televisão, o herói que estava a comer um Big Mac quando ouviu os gritos já recebeu promessas de apoio da cadeia de fast-food.