Barra Cofina

Correio da Manhã

Domingo

REBECCA ABECASSIS: A CORAGEM QUE ELES TIVERAM FOI SURPREENDENTE

É jornalista e filha de Snu Abecassis, a mulher com ar nórdico, avançada no seu tempo, que 'ganhou' um primeiro-ministro carismático, Francisco Sá Carneiro. A sua relação marcou uma época. Há 23 anos morreram ambos num acidente em Camarate.
7 de Dezembro de 2003 às 00:00
Quem conheceu a sua mãe conta que era raro ela falar de si própria. O mesmo se pode dizer da Rebecca, que evita dar entrevistas ou expor a sua vida privada?
Sou tímida e reservada por natureza. É difícil comparar-me com a personalidade da minha mãe, porque quando ela morreu eu tinha apenas nove anos.
O facto de ter optado por uma atitude ‘low profile’ permitiu-lhe viver uma vida mais calma, afastada dos olhares dos outros?
Ajudou bastante. Quando as pessoas não sabem quem nós somos, penso que temos mais autonomia. Com isto, não quero dizer que me importo que se saiba que eu sou filha da Snu. Eu tenho muita admiração pela minha mãe, principalmente por tudo o que ela fez, e identifico-me com ela. Segundo os meus familiares, somos muito parecidas.
Que tipo de comentários é que lhe costumam fazer?
Têm-me dito que a minha personalidade é a que se assemelha mais à da minha mãe. Já os meus irmãos, são mais extrovertidos. Tal como ela, também eu tenho a ‘mania’ de querer mudar o mundo - e apesar de já ter 32 anos, ainda acredito nessa utopia. No dia-a-dia, por mais insignificante que sejam as minhas acções, penso que posso contribuir para que o País evolua.
Foi isso que a levou a enveredar pelo jornalismo?
Penso que sim. Licenciei-me em Ciências Políticas e depois tirei dois mestrados em Comunicação Social, em Londres e Paris. Julgo que no Jornalismo pode-se contribuir para uma mudança efectiva da sociedade – principalmente a longo prazo.
Que razões a levaram a optar pela formação académica no estrangeiro? Já nessa altura se identificava-se mais com a cultura europeia?
Cresci a ouvir o meu pai a falar inglês com a minha mãe, depois, fiz a escolaridade obrigatória no Liceu Francês. E as férias de Verão passava-as na Suécia, na companhia da minha avó, Jytte Bonnier. Nessa altura, os meus amigos também eram quase todos estrangeirados, como eu. Não tínhamos uma relação muito forte com o País. Quando terminámos os estudos, o nosso objectivo era sair de Portugal o mais depressa possível para aprender o máximo.
Durante a adolescência deu muitas ‘dores de cabeça’ à família ou nem por isso, era atinada?
Já nessa altura tinha aquele ‘bichinho’ de querer mudar o mundo. Lembro-me de me levantar a meio da aula e discursar, ou expressar a minha opinião quando deparava com situações injustas. Era presidente da associação dos alunos do Liceu Francês.
Quando é que decidiu regressar a Portugal?
Por volta de 1996/97. Depois de um estágio de três meses na CNN, convidaram-me para eu ir trabalhar para a sede, em Atlanta. Acabei por recusar o convite, porque senti que não ia evoluir profissionalmente. Além disso, não era uma cidade que me atraísse muito. Foi nessa altura que eu achei que Portugal podia precisar de mim. Neste País, ainda há tanto para fazer, principalmente na área do internacional.
Entre 1976 e 1980, conviveu de perto com Francisco Sá Carneiro. Que recordações guarda do ex-primeiro-ministro?
Lembro-me que ele era uma pessoa atenciosa e que tinha sempre o cuidado de respeitar os outros. Realço-lhe duas qualidades, difíceis de encontrar num político: honestidade e sinceridade. Depois tinha um carisma fora de série. E além disso, era muito brincalhão. Divertíamo-nos muito.
Houve algum episódio que a tenha marcado mais?
Um dia, íamos os dois a entrar no prédio onde vivíamos – já ele era primeiro-ministro – e lembro-me de ter ficado impressionada de o ver parado, com os guarda-costas ao lado, a segurar a porta para deixar passar uma empregada doméstica. Fazia sempre questão de tratar bem os outros.
No prefácio do livro ‘Snu’, Marcelo Rebelo de Sousa escreveu que a sua mãe proporcionou a Sá Carneiro abertura para o mundo. “Dando-lhe um cosmopolitismo que, notoriamente, lhe faltava”. Na sua opinião, de que forma Sá Carneiro marcou a vida dela?
A minha mãe queria mudar Portugal, através da D.Quixote. Publicava obras que eram interditas e quando PIDE ia às instalações da editora, ela trazia os livros para casa, na mala do carro, e escondia-os debaixo da escada, para ninguém os encontrar. Acho que ele tinha a mesma missão – além da química que une duas pessoas, o facto de terem a mesma filosofia de vida, ainda os aproximava mais.
Sabe-se também que por debaixo daquela imagem de uma nórdica, inacessível e reservada, estava uma mulher que gostava de participar activamente na discussão política. E a quem Sá Carneiro recorria frequentemente para trocar ideias.
Ela foi sempre assim. Enquanto estiveram casados, os meus pais já viviam para a política. Estavam sempre atentos à situação em Portugal e já nessa altura, se mostravam interessados em intervir.
A história de Snu e Sá Carneiro foi romantizada até aos limites da ficção e chegou a ser comparada à relação de D. Pedro e Inês de Castro. Como é que explica que tenham atribuído este epíteto?
Nessa altura, uma mulher loira de olhos azuis, mais alta do que ele – o que não era difícil, porque o Francisco era baixo – estrangeira, e com uma forma de vestir diferente, talvez mais cuidada e elegante, dificilmente passaria despercebida. E foi isso que aconteceu. Junte-se a isto um homem carismático e facilmente se percebe como é que nasceu o mito. Mas para mim, a coragem que eles tiveram é que foi surpreendente.
Até ao ponto de desafiarem a sociedade tradicional. Quando o romance se tornou público, um número apreciável de dirigentes nacionais fez questão de reagir de forma negativa.
Nessa altura, houve muito oportunismo político. O próprio Mário Soares, numa intervenção, chegou a afirmar: “Quem não sabia governar a sua família, não sabia governar o País”. O mais curioso, é que durante anos, ele e a minha mãe foram muito amigos – através da D. Quixote, ela chegou a editar algumas das suas obras. Depois dessa polémica, um dia os dois cruzaram-se na Assembleia (já depois do romance se tornar público), e ela simplesmente virou-lhe as costas. O Mário Soares não gostou nada e, segundo o que ele me contou depois, os dois acabaram por fazer as pazes.
Se a classe política teve alguma dificuldade em aceitar a relação entre Sá Carneiro e Snu, o mesmo não se pode dizer dos portugueses, que rapidamente se ‘apaixonaram’ pelos dois. Quando é se apercebeu disso?
No início, tive alguma dificuldade em perceber o interesse do cidadão comum pelo casal. Só com o passar do tempo é que compreendi o que eles significavam para a maioria dos portugueses. Já houve até quem me confessasse que os pais só se divorciaram porque seguiram o exemplo da Snu e do Francisco. Outras pessoas têm-me dito que a primeira vez que viram os pais chorar foi no dia 4 de Dezembro de 1980– foi também nesse dia que vi o meu pai chorar pela primeira vez.
Depois do choque inicial, quando é que começou a mostrar-se interessada em conhecer mais pormenores sobre a sua mãe, Sá Carneiro e, claro, o acidente?
Por volta dos 12 anos, comecei a ter mais curiosidade. Não lembro que tipo de perguntas fiz, mas devo ter feito muitas porque o meu pai e os meus irmãos começaram a passar-me todos os documentos e papeis relacionados com o assunto - desde os telegramas recebidos pela minha família quando eles os dois morreram, aos recortes de jornais passando pelas cartas pessoais.
Apesar de ter perdido a sua mãe com apenas nove anos de idade, que memórias ainda guarda dela?
Só guardo boas recordações. Lembro-me que ela tinha quase sempre o dia todo ocupado, mas vivia sempre preocupada com a família. Durante a semana, chegava a casa às 17h30 e pedia-me sempre para eu me sentar ao lado dela, enquanto tomava chá com bolachas de chocolate. Era nessa altura que conversávamos mais e eu aproveitava para lhe para lhe contar o meu dia na escola. Era o nosso ‘quality time’.
Eram conhecidas as reuniões culturais e políticas na casa que Sá Carneiro e Snu partilhavam, na Rua D. João V. Apesar da tenra idade, lembra-se desses tempos?
Vivia numa casa muito agitada. Não faltavam jantares com políticos, embaixadores e escritores. Como é óbvio, não me consigo recordar de todas as caras, mas lembro-me da presença de Mário Soares, de Cavaco Silva e de Freitas do Amaral.
Que significado tem para a sua família a data 4 de Dezembro?
Foi sempre um dia íntimo. Mas desde que sou jornalista, presto mais atenção às notícias, em especial tudo o que diga respeito à questão acidente ou atentado. E claro que há histórias que me revoltam, principalmente quando oiço dizer “as famílias das vítimas alegam...”. É mentira porque nós fizemos sempre questão de não nos envolvermos em polémicas.
Como jornalista, a sua primeira reacção seria tentar apurar toda a verdade. No entanto, e tal como a sua família, tem tentado manter-se sempre afastada do caso. Como explica isso?
Na minha opinião, não é por nós participarmos nestas investigações que algum dia se vai descobrir a verdade. Eu tenho a sensação que nunca se vai saber o que aconteceu naquele dia, porque se as comissões de inquérito ou o poder político quisessem mesmo descobrir a verdade, já a tinham revelado. Há inúmeras forças de bloqueio que impedem o processo de avançar. O 4 de Dezembro tem é servido para a promoção de muitos políticos.
Para si, o assunto está encerrado?
Pode-se dizer que sim. Eles nunca mais vão voltar e nada do que se possa fazer vai alterar essa situação. Agora, estaria a mentir se lhe dissesse que não gostava que alguém descobrisse toda a verdade. Depois de um estudo exaustivo sobre o assunto e de ter conhecimento de algumas situações estranhas, que aconteceram a pessoas que estavam a investigar o caso, cheguei à conclusão que mais vale não aprofundar o tema.
Depois de tudo o que leu, a que conclusão chegou? Acidente ou atentado?
Tenho a convicção que foi um atentado. Há uma teoria que avança com a possibilidade do alvo ser, essencialmente, o então ministro da Defesa, Amaro da Costa. Segui com atenção os últimos desenvolvimentos, mas nunca me passou pela cabeça envolver-me nas investigações.
No livro ‘Snu’, a sua avó relata a conversa que teve com a filha, um dia antes do acidente: “Vamos num avião de carreira”, prometeu-lhe a sua mãe. Mas depois, uma mudança de planos ‘empurrou--os’ para o Cessna. É mais difícil lidar com a morte nestas situações?
Hoje em dia, acho que foi o destino que os fez embarcar naquele avião. Mas quem acredita na teoria do atentado, fica com a sensação que alguma coisa fez com que eles mudassem de ideias e optassem pelo Cessna. O mais curioso é que a minha mãe teve um ‘feeling’ e até desabafou com a minha avó. Confessou-lhe que estava a ficar preocupada de andar de avião, como se passassem algumas situações ‘estranhas’.
Para si, foi importante ver o livro publicado, em Portugal? Mas porquê tão tarde?
A minha avó teve sempre a noção que a minha mãe era uma pessoa útil para o país. Também ela é uma mulher muito forte e corajosa, e por isso mesmo sentiu necessidade de explicar quem era a filha dela. Para que a morte dela não tenha sido em vão. Realmente, só achei estranho que a obra tenha sido publicada este ano – e mais curioso ainda porquê no mês de Fevereiro? A editora Quetzal teve muita pressa em publicar o livro, e isso acabou por se reflectir no resultado final: a tradução não é fiel à obra original, que na minha opinião, está mais bem escrita
No livro, ficamos a saber que a Rebecca, assim que soube da trágica notícia, foi-se esconder de pé, dentro de um roupeiro. Ainda se lembra-se de algum pormenor desse dia?
Desse pormenor, por acaso não me lembro. Mas alguém deve ter contado isso à minha avó. Só me recordo da minha mãe e do Francisco se terem despedido de mim mas nem sequer lhes dei um beijinho. Eles estavam em plena campanha eleitoral, iam a sair de casa e apenas acenaram lá de baixo. Foi a última vez que os vi. Pouco tempo depois, a televisão transmitia a notícia do acidente – mas confesso que não percebi lá grande coisa. Só ouvi o jornalista a dizer ‘Morreu Francisco Sá Carneiro’ e, nessa altura, nem me apercebi que a minha mãe também tinha falecido. Nessa mesma noite, o meu pai explicou-me tudo.
Depois de viver quatro anos na companhia da sua mãe, de Sá Carneiro e do filho dele, Francisco, foi viver para casa do seu pai. De que forma é que ele marcou a sua personalidade?
Ensinou-me a ser honesta, bem educada e a não mentir. Ele foi a minha mãe e o meu pai, ao mesmo tempo. Tivemos sempre um bom relacionamento, mesmo durante a adolescência. Como eu sempre fui muito reservada e tímida, refugiava-me nos amigos – que ao longo da minha vida, foram sempre um grande apoio. Agora, claro que durante a minha vida, tive alturas em senti muita falta da minha mãe.
Como é que foi a sua relação com o ‘irmão’ Francisco?
Nós vivemos um ano sozinhos, em casa da minha mãe, depois do acidente. (O meu pai estava a fazer obras em casa, para acolher os dois.) Temos uma ligação muito forte. Ele é um irmão para mim, tal como os outros. O meu pai adoptou-o.
Anda de avião no dia 4 de Dezembro?
Já me aconteceu. E este ano, era para ir visitar a minha avó no dia 4 mas, depois, incomodou-me. Passou-me pela cabeça que se calhar não devia. É um dia em que devo ficar cá e partilhá-lo com a minha família. Às vezes, é difícil juntarmo-nos todos porque a minha irmã vive no Sul de França, o meu irmão Ricardo em Nova Iorque e o Francisco...vive cá mas trabalha demais.
B.I.
A filha mais nova de Vasco e da dinamarquesa Snu Abecassis nasceu em Lisboa, em 1971, onde cresceu ao lado dos irmãos Ricardo e Mikaela. Os pais viriam a separar-se alguns anos depois e foi na companhia do então primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro e do seu filho Francisco, que Rebecca passou quatro anos da sua vida, na casa da Rua João V. O trágico acidente do dia 4 de Dezembro de 1980, que comoveu o País, deu uma reviravolta de 1800 na sua vida. Juntamente com Francisco, foi viver para casa do pai, onde ficou até completar o liceu.
O País tornou-se pequeno para esta jovem tímida, que voou até Paris e Londres para concretizar o sonho de se tornar jornalista – como a avó, Jytte Bonnier. Estagiou na ‘France Press’, na revista ‘Nouvelle Observateur’ e ainda experimentou a rádio. Passou pela BBC World Service e pela cadeia de televisão CNN. O regresso a Portugal em 1996 levou-a até à RTP. Com a experiência adquirida lá fora, começou a escrever na área do internacional no jornal ‘Independente’, e actualmente está na SIC, onde coordena o ‘Jornal do Mundo’ e o ‘Internacional SIC’, ambos na SIC Notícias. Humilde q.b, admite que a sua missão ainda agora começou: “Tenho um longo caminho a percorrer”, confessa esta mãe de dois filhos.
Ver comentários
C-Studio