João Vale e Azevedo não teme confrontos. A 3 de Janeiro de 1999 assistiu ao dérbi Sporting-Benfica na cadeira 102 da bancada superior norte do Estádio José Alvalade. Pagou 3500 escudos (17,5 euros). De relações cortadas com a direcção sportinguista, o 31º presidente do Sport Lisboa e Benfica - eleito a 31 de Outubro de 1997 - juntou-se aos adeptos.
E fê-lo sem a protecção das claques nesta vitória benfiquista (por 2-1). "A presidência dele nunca chegou ao auge. Era o presidente que tínhamos, era o que havia" - conta à Domingo Emanuel Lameira, o então líder dos Diabos Vermelhos.
Dois ex-amigos descrevem-no, no entanto, como "um génio do mal" - diz José Manuel Capristano, que esteve a seu lado como vice-presidente do Benfica - e "um predador que usa de todos os meios para atingir os fins que ambiciona" - julga Pedro Dantas da Cunha, burlado na venda de um imóvel em Lisboa.
REGRESSO À PRISÃO
Na semana passada, chegou a Portugal após extradição de Londres - para onde fugiu à Justiça portuguesa em 2007, vivendo uma vida digna de lorde, numa mansão no bairro do magnata russo dono do Chelsea, Roman Abramovich, e passeando-se num Bentley Arnage T de 380 mil euros. Vale e Azevedo permaneceu três dias no Estabelecimento Prisional de Lisboa. E indignou-se com a cela: teria de se lavar com recurso a baldes - acusação desmentida pelos serviços prisionais. Foi transferido para a prisão da Carregueira, Sintra. Ainda tem cinco anos e meio de prisão para cumprir - o Tribunal da Boa Hora condenou-o a onze anos e meio de cadeia, em cúmulo jurídico, por quatro processos, e deve 22,1 milhões de euros mais juros (ver caixa).
Parte da pena foi cumprida entre Agosto de 2001 e Fevereiro de 2004. "Cada dia na prisão é uma terrível violência", disse Vale e Azevedo à ‘Visão', em Janeiro de 2003. Ao fim de três anos de presidência do Benfica - numa lógica de "eu quero, posso e mando", diz José Manuel Capristano -, Vale e Azevedo perdeu para Manuel Vilarinho. Quinze dias depois, a 14 de Novembro de 2000, arranca a investigação do crime de peculato no caso do guarda-redes russo Ovchinnikov. Será preso no ano seguinte.
A 19 de Fevereiro de 2004, é posto em liberdade por apenas 14 segundos. Esperavam-no à porta do estabelecimento prisional anexo à PJ a mulher, Filipa, e o irmão, Álvaro, juntamente com o motorista. As malas e a televisão já estavam no interior do Mercedes classe S quando o ex-dirigente do Benfica foi abordado por dois agentes da PJ com um novo mandado de detenção. Mais tarde, Vale e Azevedo viria a confessar que esteve quase a suicidar-se. "Foi o momento mais difícil em toda a minha vida. Tive de ter muita força para não pôr termo à vida", disse à Lusa.
"O dr. Vale e Azevedo é possuidor de uma mente claramente focada na montagem de esquemas que levam as suas vítimas a serem enganadas, independentemente de as mesmas serem de classe baixa, média ou alta", afirma Dantas da Cunha. "A primeira burla deve ter sido quando começou a falar", acrescenta uma fonte que prefere o anonimato. No entanto, acrescenta, "o primeiro caso foi a falsificação de uma procuração de uma senhora idosa, para vender o seu prédio. Foi investigado, mas não resultou em acusação".
José Manuel Capristano conta que a sua relação com Vale e Azevedo na direcção do Benfica sempre correu bem. "Já depois de perder as eleições, pediu-me dinheiro emprestado, que da primeira vez pagou. À segunda, já não voltei a ver o dinheiro. Mesmo quando foi preso dizia sempre que ia pagar-me tudo, porque sabia que eu ‘não era rico'. Mesmo quando já corria que tinha deixado de atender o telefone, continuou a atender--me. Eu perguntava-lhe: então dizem para aí que não atendes o telefone? E ele dizia: ‘Acha? Quem não deve não teme!' Até que deixou mesmo de atender."
FAMÍLIA COM POSSES
João António de Araújo Vale e Azevedo nasceu na freguesia do Campo Grande, em Lisboa, a 17 de Maio de 1957, terceiro filho varão de uma família do Ribatejo que vivia em Lisboa num apartamento, apesar de a família paterna ter posses e terras.
Na Casa da Lamarosa, situada na freguesia da Olaia, Torres Novas, vive hoje um tio de João Vale e Azevedo, que dá pelo mesmo nome. Na terra, todos recordam a "família de bem" e o médico que mereceu nome de rua. Na avenida Dr. João Martins Azevedo, ainda se ergue a casa senhorial, a que chamam ‘Casa Vale e Azevedo', onde nasceu António Cândido, licenciado em Finanças, pai do ex-presidente do Benfica. A família mudou-se para a capital e passou a ir à Lamarosa nas férias.
‘Jica', como era conhecido na família, estudou no Colégio São João de Brito entre 1963 e 1974. Anos depois, aí estudaram os dois filhos. Aos 17 anos, antes de da faculdade, ganhou o primeiro salário como paquete e, no final dos anos 70, foi proprietário de um clube de vídeo em Picoas.
Teve uma passagem discreta pela Faculdade de Direito de Lisboa, onde se licenciou em 1980, no mesmo ano de António Vitorino (PS) e Assunção Esteves (presidente da Assembleia da República). Uma antiga colega de curso, que pediu anonimato, recorda o ex-presidente do Benfica como "alguém que passou por lá. Não era um aluno que se destacasse, nem pelas notas nem pelas intervenções brilhantes". Dessa época, recorda o rapaz a quem muitos solicitavam os apontamentos - no currículo diz ter sido monitor de Direito de Família de 1979 a 1982. Quando terminou o curso - com média de 13 -, esteve oito meses em estágio no escritório de advogados de António Carlos Lima, seu patrono.
"Veio aqui parar porque era colega de curso e amigo do meu filho Miguel. Ainda me lembro dele aqui sentado: muito meticuloso, atento, queria sempre ver o que eu fazia e tentava fazer igual. Copiava mesmo, queria que saísse tudo bem", lembra o causídico. "Entristece-me aquilo em que se tornou. Tinha tudo para vingar. A última vez que o vi foi meses após terminar o estágio, quando apareceu no escritório para interpor uma acção de uma verba enorme. Disse-lhe que não pegava naquilo e nunca mais voltou."
Vale e Azevedo viria a ser suspenso, em 2005, por dez anos, da Ordem dos Advogados (OA) "por violação continuada, livre e consciente, com dolo directo". Mas poderá ainda vir a ser expulso.
‘JICA DAS FOTOCÓPIAS'
"Quando cheguei ao PSD (então PPD) em Outubro de 1974, ele e um conjunto de outros alunos que estudavam Direito eram colaboradores do partido de que eu passei pouco depois a ser secretário-geral. Vale e Azevedo coordenava a reprografia, nome pomposo que dávamos a uma pequena e arcaica oficina de tipografia onde se imprimia a propaganda do partido", lembra António Capucho.
Terá sido a colar os cartazes que imprimia na cave de um edifício na avenida Duque de Loulé que o ex-dirigente do Benfica conheceu Filipa Cabral, então com 22 anos e acabada de regressar dos Estados Unidos, onde se formara em Gestão. Segundo fontes ligadas ao partido, o "Jica das fotocópias" começou por trabalhar na máquina do partido mas não na política. Tanto que nunca o terão visto nessa altura em comícios ou empenhado em discussões. "Era um trabalhador pago como qualquer outro. Teve um percurso discreto mas eficiente antes de transitar para o Grupo Parlamentar e depois para o Instituto Programa Social e Democracia", acrescenta António Capucho.
Vale e Azevedo assumiu maior destaque partidário, como assessor jurídico, ao integrar o gabinete de Francisco Pinto Balsemão quando este era primeiro-ministro (Janeiro de 1981 a Junho de 1983). "Lembro-me dele dessa altura. Era bem mais magro e tinha mais cabelo. Era simples, de fácil trato, nada a dizer contra", acrescenta Ângelo Correia, então ministro da Administração Interna.
Zeca Mendonça, hoje assessor do PSD, também se cruzou com Vale e Azevedo. "Tinha uma equipa que jogava futebol e cheguei a jogar contra ele no Lumiar. Não era um Cristiano Ronaldo, mas lembro-me perfeitamente do golo da vitória que ele marcou à minha equipa."
Quando o Benfica e o Clube Desportivo de Torres Novas se encontraram para a quarta eliminatória da Taça de Portugal (1999), os torrejanos exultaram: afinal de contas, Vale e Azevedo tinha origens em Torres Novas e era por isso uma dupla alegria, uma vez que era a primeira vez que os dois clubes se defrontavam em competições oficiais. Depois da euforia, a revolta. E não se pense que foi por causa do resultado (1-0 para o Benfica). "Então não é que o Vale e Azevedo convidou toda a direcção do nosso clube para ir almoçar à Luz, numa mesa farta com tudo do bom e do melhor, onde até estava o apresentador Carlos Cruz, e disse sempre: ‘O Benfica paga, o Benfica oferece'. Quando fomos a ver as contas do jogo, ele tinha incluído o almoço para nós pagarmos. Eu já estava de pé atrás porque nunca gostei de pessoas que se gabam a si próprias, mas depois disto vi logo como ele era", acusa Manuel Piranga, à época presidente do Torres Novas.
Sócio número 13 001 do Benfica, desde os 15 anos, Vale e Azevedo foi praticante de râguebi e tinha queda para os desportos radicais.
Em 2002, numa carta aberta ao CM, elogiava o " bom casamento, uma mulher fantástica (e única) e dois filhos bem formados, já adolescentes (18 e 16 anos), muito amigos e unidos aos Pais". Francisco, hoje com 29 anos, dar-lhe-á um neto dentro de meses. "Ainda não sabemos o sexo, o importante é que venha com saúde", comentou à Domingo a mulher, Filipa Vale e Azevedo, escusando-se a prestar mais declarações.
O filho mais velho licenciou-se em Arquitectura na Universidade Lusófona e no currículo constam um emprego na V&A Capital Lda, como relações-públicas, e durante um ano na IMAVED. É precisamente para uma conta em nome dessa sociedade que vai o lucro do arrendamento da casa de Sintra. A antiga morada de Vale e Azevedo, a Quinta de Cima, em Almoçageme, é hoje explorada pela mulher, Filipa Azevedo, como guest house. Publicitada em sites internacionais, tem dez quartos, salas e piscina, é arrendada, de Abril a Outubro, por dois a três mil euros por semana. O contacto de telemóvel remete para a própria Filipa Azevedo, que atende pessoalmente os interessados. A clientela é na sua maioria estrangeira e não poupa elogios "às boas vistas", "ao local maravilhoso, perto das praias e de Lisboa" e "ao profissionalismo da anfitriã", como se lê nos comentários nos sites da especialidade. A reserva obriga ao pagamento de 50%, transferido para conta do Millennium BCP em nome da IMAVED, SA, sociedade de investimento imobiliário.
Em Janeiro de 2007, os bens que a família tinha na casa de Colares foram arrestados. São vários os artigos luxuosos para leilão: peças de ouro e prata, louças de cristal e serviços da Vista Alegre, tapetes e pastas Gucci. A casa e outros bens escaparam porque foram "colocados em nome de sociedades portuguesas perfeitamente normais", conta uma fonte.
LUXO EM LONDRES
Filipa tem sido a companheira de todas as horas - em 2008, o CM encontrou-os em Londres a fazerem vida luxuosa na altura em que foi emitido o primeiro mandado de captura. Na mesma carta aberta, Vale e Azevedo referia ter criado "do nada um escritório de advocacia, moderno, dinâmico e com boa implantação em Portugal, em alguns países europeus e nos Estados Unidos". Mas a verdade é que no final dos anos 90 o ambiente no escritório já não era famoso. "Quando ele foi eleito presidente do Benfica, começámos a viver numa grande tensão", conta um advogado que trabalhou na Vale e Azevedo e Associados. "Foram tempos difíceis, porque tínhamos alguns clientes que confiavam em nós enquanto advogados mas não queriam estar associados ao escritório em si. Chegaram a pedir-nos para assinar sem ser no papel timbrado, para não sermos conotados com o que ele fazia", continua.
Certo - segundo a mesma fonte - é que Vale e Azevedo mantinha "a parte dos negócios afastada da parte do contencioso. No contencioso, trabalhavam os advogados, nos negócios a pasta era dele e nada sabíamos sobre o que se passava. Chegou a ter colaboradores pontuais e que faziam o que ele mandava".
Pedro Dantas da Cunha acrescenta: "A sociedade portuguesa não tem noção da verdadeira dimensão do número de burlados pelo dr. Vale e Azevedo. Além dos casos mediáticos, conheço muitos outros em que as pessoas, ou pelo cargo que ocupam ou por vergonha de se exporem, se recusam a dar a cara , muito embora me telefonem com assiduidade a chorar as suas mágoas. Refiro-me a casos em Portugal e em outros países, nomeadamente Inglaterra, Suécia, Irlanda, Angola."
Lá fora, somou burlas e fraudes envolvendo companhias internacionais (como o banco alemão BHF-Bank e uma empresa petrolífera inglesa, com os quais negociava através da advogada Luísa Cruz e assinando como J. Vale, o que não permitiu às empresas perceberem que era um burlão procurado internacionalmente) e cidadãos estrangeiros, a quem subtraía as poupanças através dos esquemas de investimento da V&A Capital. Conforme os podres foram vindo a lume, o casal Azevedo ficou conhecido em Inglaterra como "turistas da bancarrota", expressão comum em Inglaterra devido às suas leis mais brandas neste campo.
Lesado em 15 milhões de euros, Dantas da Cunha acrescenta: "É um homem com uma ambição sem limites e cuja ganância o leva a praticar todos os actos necessários à apropriação do que não é seu, independentemente de quem fique prejudicado, seja família - roubou pai, a mãe, o tio, o irmão e um dos cunhados -, amigos, clientes ou desconhecidos."
O cunhado Miguel Lencastre Cabral, agente de execução, que chegou a ser acusado num processo-crime por falência fraudulenta de algumas das empresas de Vale e Azevedo das quais era administrador, não comenta o caso: "Não mantenho ligações com ele."
Um colega de trabalho de Miguel Lencastre Cabral diz que "ele assinava de cruz". E acredita que "não sabia nem de metade do que se passava", nem "teve nenhuns benefícios materiais".
O outro cunhado, o jornalista Martim Cabral, também não tem hoje qualquer relação com Vale e Azevedo.
O REGRESSO DE RUI COSTA
Nos três anos em que foi presidente do Benfica, Vale e Azevedo deixou marcas. Para o bem e para o mal. Uma das promessas que o fez ganhar as eleições em 1997 foi o regresso de Rui Costa ao Benfica. Mas o então jogador da Fiorentina só voltaria a Lisboa muitos anos depois.
Talvez uma das poucas decisões acertadas de Vale e Azevedo tenha sido a escolha de um "jovem treinador muito ambicioso" para a equipa na época 2000/01. José Mourinho estreou-se como treinador pela mão de Azevedo, mas viria a sair do clube antes do final da época, em ruptura com Manuel Vilarinho, o presidente que ganhou as eleições em 2000.
O mandato de Vale e Azevedo fica ainda marcado pela formação da SAD do Benfica - Vale chegou a ter a alcunha de ‘Marquês da SAD' - e foi durante a sua vigência que se iniciou a construção do centro de estágios do Seixal. Sem qualquer título no futebol, o Benfica conseguiu apenas uma vitória no ciclismo, colectiva e individual, com David Plaza a vencer a Volta a Portugal de 1999.
Quanto aos direitos dos jogos do Benfica, o então presidente tentou por todos os meios rescindir o contrato com a Olivedesportos para assinar com a SIC, de Pinto Balsemão. Vale e Azevedo acabaria por ser expulso do clube por votação dos sócios em 2005.
O deputado do CDS-PP José Ribeiro e Castro, que foi vice-presidente de Vale e Azevedo (durante os primeiros seis meses), recorda o ex-presidente do Benfica como "uma pessoa que faltava sistematicamente à verdade". António Sala, que tinha o pelouro da Cultura no Benfica, diz apenas: "Tenho tantas dúvidas em relação ao carácter de Vale e Azevedo que até receio falar sobre isso". Em Novembro de 1998, António Sala organizou um jantar, na casa de Vale e Azevedo em Almoçageme, "de agradecimento aos artistas que costumavam actuar nas festas do Benfica, porque geralmente faziam-no de graça", recorda António Manuel Ribeiro, dos UHF. Sobre Vale e Azevedo, ajuíza: "Era um homem com um discurso megalómano - do tipo ‘nós somos os maiores'- e em relação ao qual eu tive logo reservas. É uma daquelas pessoas que se servem do futebol em vez de servirem o futebol."
O advogado António Pragal Colaço, autor dos livros ‘Apanha-me se Puderes' e ‘A Vida de Vale e Azevedo', não esquece que "ele enganou muitas pessoas e instituições". E remete mais declarações para breve: "A seu tempo, falarei sobre Vale e Azevedo, mas apenas numa nova luta jurídica, que tenho em mãos, de ingleses que por ele foram burlados."
UMA LONGA BATALHA COM A JUSTIÇA
Em Fevereiro de 2001, Vale e Azevedo é detido pela PJ. Acusado de se apropriar de 640 mil euros da transferência de Ovchinnikov. Em Agosto, fica em prisão preventiva, e é condenado, em Abril de 2002, a quatro anos e meio de cadeia.
Entretanto, arranca o processo Euroárea, relacionado com a venda de terrenos do Benfica. Solto em Julho de 2004, é condenado a ano e meio de prisão em 2005. Voltaria a ser condenado a penas de prisão em mais dois processos - a burla a Dantas da Cunha (2006) e a dois empresários no processo Ribafria (2007). Apresenta cauções falsas no valor de 1,3 milhões de euros para ficar em liberdade e escapa-se para Inglaterra, que, em 2008, começa a apreciar os pedidos de extradição de Portugal.
O cúmulo jurídico das quatro condenações dá uma pena de 11 anos e meio. Descontados os três anos e meio que esteve preso, e mais dois e meio de liberdade condicional, falta-lhe cumprir cinco anos e meio. E volta a ser julgado em Portugal e também em Inglaterra.