Aponte a frase porque temos um desafio para o(s) leitor(s). "É uma vibração que me percorre o corpo, como um tremor de prazer na cabeça e por vezes até me vejo envolta em luz, mesmo com olhos fechados."
Primeira pergunta: de que fala a pessoa que acima citamos? Se respondeu orgasmo acertou ‘na mouche’, por isso podemos passar à pergunta seguinte sem nos perdermos em preâmbulos desnecessários.
No prefácio da obra, a sexóloga justificou a empreitada a que se dedicou durante vários anos e que foi revolucionária aquando da sua publicação: "Nunca se perguntou às mulheres como se sentem em relação ao sexo. Sexualidade feminina tem sido vista essencialmente como uma resposta à sexualidade masculina e à relação sexual. O que estes questionários tentam fazer é perguntar às próprias mulheres como se sentem, do que mais gostam e o que pensam sobre sexo", escreveu a autora, e aquelas que aceitaram responder mostraram que de facto sentiam essa necessidade.
"Respondi a este questionário porque acredito que já é tempo de as mulheres falarem dos seus próprios sentimentos a respeito do sexo. Se gostei [de responder]? Eu só posso dizer que foi um grande alívio para mim poder dizer estas coisas finalmente alto e bom som. Pela minha parte estou mortalmente enjoada de ler o que os homens dizem sobre a minha sexualidade", disse uma delas.
"Estou cansada de ouvir certos homens dizerem o que devo sentir ou querer, como é ou devia ser a minha sexualidade", comentou outra.
"Respondi na esperança de que possa elucidar outras mulheres para que elas não passem pelo que eu passei pensando que são frígidas, inadequadas ou que têm qualquer coisa errado (…) Há seis anos o meu médico disse-me que os orgasmos ‘viriam’ um dia quando eu ‘menos esperasse’. Estou feliz por não ter simplesmente ficado à espera sentada!", congratulou-se uma das três mil mulheres que respondeu aquele que viria a ficar conhecido como o ‘Relatório Hite’ - em referência ao nome da sua mentora, a sexóloga, feminista e historiadora que escreveu um dos 100 livros fundamentais do século XX (assim foi considerado).
"Muitas mulheres sentem-se ressentidas porque frequentemente não têm orgasmo, enquanto os homens quase sempre têm", escrevia Shere Hite na altura, numa análise às respostas que recebeu. "Como se sentiria um homem se fizesse amor e nunca atingisse o orgasmo?", perguntou uma das ‘entrevistadas’ que há quarenta anos respondeu ao questionário, enquanto outra que aceitou o mesmo repto aproveitou a oportunidade para se lamentar: "Se não tenho um orgasmo sinto-me desadaptada, inadequada".
"Ainda se veem parecenças com o ‘Relatório Hite’. Ainda tenho muita gente que me procura porque não consegue ter um orgasmo vaginal com o parceiro, o mítico orgasmo vaginal. Tal como descrevem no relatório as mulheres de então, as mulheres de hoje que não conseguem ter orgasmo vaginal descrevem-me em gabinete que acham que são menos mulheres, que estão estragadas… e até acho que isso hoje acontece com uma predominância maior, porque passou-se de um direito ao orgasmo, a uma ditadura do orgasmo. Neste momento, o orgasmo tem que ser múltiplo, tem que haver sempre um objetivo acima para conquistar… é uma sexualidade mas é uma sexualidade muito guiada por objetivos", considera Carmo Gê Pereira, que faz aconselhamento sexual, assessoria erótica, ‘tuppersex’, workshops de pompoarismo (técnicas de ginástica íntima) e autoerotismo, entre outros eventos ligados à sexualidade.
E os homens estão hoje mais preocupados com o prazer das mulheres? "Alguns estão por um aspeto altruísta mas há muitos homens, e isto causa um problema, que põem uma pressão tremenda nas parceiras de terem um orgasmo quando na verdade não proporcionam um estímulo adequado a isto. E mesmo só a pressão pode ser uma coisa terrível. Mesmo que haja a estimulação adequada termos alguém que está ali a verificar se há orgasmo ou não pode ser uma pressão terrível", continua Carmo Gê Pereira.
"É muito importante que haja este investimento na descoberta do prazer das duas pessoas e a preocupação com o prazer do outro. Já me aconteceu pessoas chegarem a worskshops e aconselhamento, principalmente mulheres cisgénero [pessoas cuja identidade de género corresponde ao sexo que lhes foi atribuído no nascimento], e dizerem-me ‘porque a culpa não é do meu parceiro porque ele diz que a todas as outras ele conseguia dar orgasmos ou que as outras parceiras todas ejaculavam’. Isto não é uma maneira eficaz de comunicar ou de se ter uma preocupação eficaz com o prazer do parceiro. Isto preocupa-me quando o orgasmo e a ejaculação servem de medalha para a competência", observa a conselheira sexual.
Por seu lado, a sexóloga Vânia Beliz acredita que "os homens estão mais preocupados com a sexualidade das companheiras. Às vezes até noto que eles estão mais preocupados do que algumas mulheres, no intuito de lhes dar prazer. Aquela ideia do homem só se querer satisfazer a ele próprio foi uma coisa que mudou. E isso também tem a ver com as mulheres terem outro conhecimento e exigirem algumas coisas que antes não exigiam. Antigamente a mulher também só conhecia um parceiro e perante a emancipação sexual já reclama prazer porque sabe que se aquilo não é bom pode ser melhor".
Mas, continua Beliz, apesar dos movimentos feministas que apelam à liberdade das mulheres e ao prazer, "continua a ser muito difícil para as mulheres falar de intimidade. Ainda ontem respondi a uma rapariga que me escreveu uma mensagem em pânico a dizer que tem relações sexuais com o namorado mas não fica lubrificada e me dizia ‘se calhar tenho um problema’. Continuo a notar que as mulheres têm muita necessidade de falar mas ainda muita dificuldade em fazê-lo", lamenta.
"E em relação às escolas, há coisas que até se falam menos do que na minha altura da adolescência. Os meus livros sobre sexo eram muito mais explícitos do que são agora, não havia problema nenhum de ver uma imagem quando se falava de como se fazem os bebés de uma mãe em cima de um pai ou um pai em cima de uma mãe. Agora isso é considerado pornografia. Não sei se é esta coisa do politicamente correto que tem travado algumas coisas", considera a sexóloga, numa opinião partilhada por Carmo Gê Pereira.
"Estamos a viver um clima de retrocesso onde se estão a pôr em causa os direitos associados a uma sexualidade baseada no prazer. Há todo um clima político atual de conservadorismo e isto tudo está interligado, porque quando nós dizemos que o privado é político também sabemos que o político tem impacto no privado", alerta a também ativista sexual.
E fingir orgasmos?
"Sim, já fingi um orgasmo, porque achava que ele [o parceiro] ficaria triste se eu não tivesse", respondeu-nos uma mulher de 35 anos que preferiu não revelar a profissão. "Nunca, nunca, nunca [fingi]", escreveu-nos por seu turno uma enfermeira de 34 anos, casada e com dois filhos.
"Sou casada há dez anos com um homem que sempre foi mais inibido. Ingenuamente acreditei que com a convivência melhoraria. Mas a rotina e os filhos matam metade do desejo. Já tive relações extraconjugais sim, em segredo. Suscita algum desejo, acabo por me empenhar no sexo com o meu marido, mas sem frutos", revelou em resposta a uma das perguntas do questionário.
"Gosto muito que me provoquem. Olhares, gestos, conversa ordinária. Não preciso de muitos beijos, guardo isso para a expressão de amor fora do sexo. Despertar o meu imaginário erótico é essencial. Sentir-me desejada é metade do tesão. Talvez por isso, agora que tenho dez anos de casamento, sinta que não ando satisfeita", lamenta numa outra resposta ao ‘Relatório Hite’, enviado por Carmo Gê Pereira e que nos chegou por email.
Recuando ao início dos anos setenta e às respostas que chegaram a Shere Hite por correio postal houve quem dissesse "É raro acontecer-me uma f... altruística, sem orgasmo. Sem orgasmo sinto-me roubada." Mas também quem tenha dito "eu fingia porque os homens gostam de me ver ofegante"; "fingi sempre (estou com 62 anos); "fingi durante 30 anos porque preciso de aprovação – não tenho autoconfiança (…) e também por não querer ferir o meu marido, que também é inseguro" e ainda uma outra versão, mais preguiçosa: "Antes de ter orgasmos eu fingia para que o homem parasse e me deixasse dormir."
"Eles não conhecem e parecem não querer informar-se sobre o clítoris, assim como antigamente as pessoas se recusavam a acreditar que a terra girava em torno do sol. E as mulheres continuam a ser desonestas. Em geral mentem para segurar o homem", vinha escrito noutro questionário. E num outro uma mulher que não esperou que as mentalidades evoluíssem para reclamar o seu direito ao prazer: "A maioria dos meus parceiros parecia achar que com dois minutos de beijos e carícias eu ficaria automaticamente excitada e pronta para f... como eles. Tive de lhes mostrar ou dizer o que queria. Nunca nenhum deles me perguntou (…)."
"Acho que continuamos todas a ser muito boas a fingir orgasmos quando é necessário. Mas acho que se finge cada vez menos porque as mulheres tem cada vez menos necessidade disso. Até porque estamos mais exigentes, não só connosco próprias mas com os nossos parceiros e parceiras. E é importante dizer às mulheres que se sentem incompetentes sexualmente para terem atenção para perceber se estão a receber o tipo de estímulos que necessitam. E isto não depende só do parceiro mas também da parceira", acredita Ana Alexandra Carvalheira, investigadora da área e autora do livro ‘Em Defesa do Erotismo’ (Ed. Desassossego).
"Temos que ter noção que vivemos numa sociedade patriarcal e machista, que o fingir orgasmos pode ser uma questão de sobrevivência. No mundo ideal ninguém teria que fingir nada mas não é esse o mundo em que vivemos. E num mundo em que não se estimula a comunicação entre o casal se a pessoa disser que não tem orgasmos pode correr o risco de a outra pessoa ficar magoada, fazer uma cena, e isso levar a perda de intimidade", observa Carmo Gê Pereira.
"A socialização sexual das mulheres é mais livre e permissiva do que alguma vez já foi mas ainda assim com a masturbação há muitas dúvidas; esta continua a ser a ala secreta da sexualidade feminina. Ainda há mulheres que se masturbam com o sentimento de que é qualquer coisa não é suposto fazer, ainda existe. Já quase não há tabus na sexualidade mas se houver a masturbação é um deles", acredita Ana Carvalheira.
Em resposta à pergunta ‘Descreva a melhor forma pela qual o seu corpo pode ser estimulado para que atinja um orgasmo’, a enfermeira de 34 anos que já tínhamos citado respondeu-nos (em 2019) que "A forma mais eficaz é pela masturbação, porque quem melhor do que eu para perceber como? Gosto de estar confortável. Deitada de barriga para cima ou para baixo. Por vezes vario para a posição de quatro ou até de cócoras apoiada de costas na cama/sofá. O movimento básico é com o dedo médio em movimentos circulares. Tb gosto de usar vibrador, mas sobretudo para estimulação externa, primeiro toda a vulva e depois focar no clítoris. Por vezes inicio a masturbação com uma sugestão visual (porno) ou então uma fantasia que tenha elaborado."
No livro publicado em 1976, a autora anunciava como descoberta da pesquisa por ela efetuada que "só aproximadamente trinta por cento das mulheres podem vir-se regularmente no coito". "Gosto do coito de qualquer modo e por isso sinto-me uma pervertida! Aos trinta já tinha quinze de f..., e ainda sem capacidade de ter orgasmos! Estou farta!", queixou-se uma das ‘entrevistadas dos anos 1972 a 1974. "O sexo no melhor dos mundos? O meu clítoris estaria na minha vagina, por Deus, e poderia sentir quando f...", respondeu outra com humor.
Uma licenciada de 37 anos [optou por não dizer a profissão] a viver uma união de facto há um ano e meio respondeu agora com igual frontalidade às questões sobre masturbação.
"Gosto de me masturbar tanto a nível físico como emocional. De momento [faço-o] em média umas duas vezes por mês. A masturbação leva ao orgasmo sempre. Quando sou eu a masturbar-me pode ser entre 3 a 10 minutos. Dois orgasmos no mínimo e pode ir até uns 15 (deixei de contar quando uma vez cheguei aos 10!)", revelou-nos no questionário enviado por email.
Uma técnica de unhas, licenciada, de 27 anos, respondeu-nos que demora menos de um minuto a atingir o orgasmo, enquanto que uma ilustradora de 23 anos, solteira, explicou-nos como o consegue atingir: "Normalmente imagino alguma situação que me excite, e começo por massajar o clitóris devagar. As minhas pernas costumam ficar fletidas, e eu costumo estar de barriga para cima. Utilizo os dedos para sentir se estou molhada e aí toco-me nos lábios, orifício vaginal, clitóris. Tento vários movimentos e com várias intensidades e velocidades (de gestos) até começar a sentir mais e mais prazer, até começar a sentir que estou no caminho para atingir o orgasmo. Aí insisto mais, aumento a velocidade e a força até me vir".
Uma engenheira de 36 anos, formada em engenharia cerâmica e do vidro, mas atualmente diretora da qualidade e ambiente numa empresa revelou-nos que para o efeito usa um gel e estimulação com as mãos e um vibrador no clítoris ou na zona dos grandes lábios. "Por norma não faço introdução do vibrador, as minhas pernas ficam afastadas".
Algumas das mulheres que responderam às perguntas entre 1972 e 1974 aproveitaram a oportunidade para fazer perguntas – "É coisa rara não ter orgasmo no coito? Poderia dar sugestões de como se ter um?" foi uma delas – enquanto que em agosto de 2019, uma das pessoas que nos respondeu ao questionário aproveitou para agradecer: "Foi bastante pertinente para refletir sobre a minha sexualidade e criou a oportunidade para partilhar ainda mais sobre o tema do sexo com o meu parceiro, aumentando a nossa cumplicidade e intimidade. Obrigada".