Foram várias vitórias numa só, além de ter conseguido fazer o curso, consegui ultrapassar medos e alguma timidez", desabafa Felisbela Dias, ainda sem acreditar que já tem o canudo na mão.
Estamos num dos anfiteatros da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL). Instalada numa cadeira onde se sentou nestes últimos quatro anos, Felisbela não cabe em si de contente quando recorda que: "Era o que eu mais queria, mas como todas as experiências novas foi também assustador. Foi bem puxado!"
O curso exigiu muito estudo, mas cumprida a sua missão na universidade particular que lhe ofereceu há quatro anos a frequência da Licenciatura em Direito, Felisbela conta que ainda agora fez a última oral e já uma certa nostalgia lhe invade a alma irrequieta. "Já dá saudades, quando se entra aqui, o cheiro da faculdade, parece que estou em casa. Acabou há muito pouco tempo. Mas parece que ainda não acabou." E, na verdade, ainda falta um bocadinho. A vida continua a desafiar Felisbela, tal como aconteceu quando ficou em coma, durante três dias, no Hospital de Santa Maria, depois de uma bala perdida a ter atingido na cabeça, quando brincava no recreio da escola. Feita a licenciatura, Felisbela ambiciona avançar para o mestrado, também na UAL, mas volta a não reunir condições financeiras.
O sonho do mestrado "Tenho vindo a juntar dinheiro desde o primeiro ano da faculdade para esse fim. Só que não dá para juntar tanto. Mas não baixo os braços. Trabalhar e estudar não é o fim do mundo. Não vou morrer amanhã, por isso se não der para fazer este ano, faço uma especialização, para isso tenho dinheiro. O mestrado também vai ser possível, nem que seja um pouquinho mais para a frente."
Durante estes quatro anos, Felisbela arranjou maneira de ir amealhando.
"Dou apoio jurídico online. Ajudo em processos de emigração. Trato de IRS, e elaboro documentos, quando as pessoas têm dúvidas. Procuro agora outra coisa, assim dá para conciliar e pagar o mestrado."
Agora, com 25 anos, Felisbela continua igual a si própria. Em 2018, a jovem já tinha deixado os estudos há dois anos. Sem possibilidades para ingressar na faculdade, estudava em casa, sozinha, o seu Código Penal. Recém-licenciada, Felisbela já tem na cabeça, tintim por tintim, toda a dissertação de mestrado que pretende colocar no papel.
"Já tenho capítulos prontos. Se é uma coisa que quero muito, acho importante ter metas para correr atrás. Quero abordar o tema do genoma humano conciliado com o ‘factum criminis’, para salientar a importância dos genes e estudar se realmente há aquela perspetiva, que muita gente refere, do gene criminoso." Na vida de Felisbela o crime continua bem presente e esse é o seu objetivo profissional: a área da investigação criminal.
A madrinha torce por Felisbela. "Pode ser que haja um milagre de Deus, pode ser que haja uma estrelinha lá em cima que a ajude, como houve ajuda para a licenciatura, que haja também para o mestrado, quem sabe?", diz Fernanda Lourenço e reforça: "Se ela conseguisse fazer tudo seguido era ótimo."
Entretanto, Felisbela não pára. Fez um curso online de Perícia e outro de Genética Forense e tentou ainda "fazer estágio de verão no Instituto de Medicina Legal, mas não havia vagas. Fica para o ano!"
‘Menina-milagre’Felisbela já não vive no Bairro do Pendão, em Queluz, mas continua a gostar de ficar no seu cantinho. Felisbela é menina reservada. Abre-nos a porta do seu novo apartamento, atribuído pela segurança social, mas só nos apresenta a sua amiga Vicky, a cadela já velhota, que continua a ser a sua grande companheira. E namorados? "Ah! Eu não posso falar disso, não devo expor!", remata Felisbela.
O pai faleceu em 2015 com cancro. Quanto à mãe, que a abandonou aos 6 anos, pouco depois de ter tido alta do hospital, diz ter percebido que "ela nunca foi mãe, foi apenas a minha progenitora. Pôs-me no mundo e pronto. Não tenho vínculo, não tenho laços, não faço questão de criá-los, porque acredito que não me irá acrescentar nada. Não faço questão", conclui Felisbela.
Não são da família de sangue, mas são do coração, a jovem tem sempre ao seu lado alguém que se orgulha muito das suas conquistas, os padrinhos de batismo, que a acompanharam e apoiaram desde sempre. "Parabéns! E que Deus lhe dê aquilo que ela peça!", deseja o padrinho, Américo Lourenço. Em lágrimas, a madrinha Fernanda acrescenta: "Gosto muito dela. Apoio-a em tudo o que ela precisar. Ela sabe que tem aqui a madrinha!"
Felisbela Dias, "a menina-milagre" que hoje tem um curso superior, ambiciona mais e anuncia-o com a mesma determinação de sempre. Os próximos passos serão como mandam as leis da sua própria natureza: bem planeados e bem estudados. "Pois tem de ser! Pensar nos próximos passos que têm de ser pequeninos. Nunca se dá passos maiores que as pernas. E muito bem pensados. É ir caminhando…", remata Felisbela com um sorriso de orelha a orelha. O mesmo de há 19 anos, quando deixava o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, ao colo do padrinho, com uma bala alojada na cabeça.
Uma das melhores alunasEm 2018, Felisbela pediu para consultar os arquivos do CM. "Queria saber o que tinha acontecido, porque eu perdi a memória da minha infância e adolescência", conta. O CM abriu-lhe as portas, a CMTV realizou a reportagem ‘Felisbela – A menina-milagre’. Após a emissão, a UAL ofereceu-lhe a frequência da Licenciatura em Direito. "Ficámos muito sensibilizados com a tua história e a Universidade decidiu proporcionar-te condições de realizares o tal sonho. Neste momento já és uma embaixadora da UAL, sê-lo-ás para toda a vida. És uma filha da casa e assim vais continuar a ser", afirma Reginaldo Almeida, Administrador Escolar da UAL. "A Felisbela foi considerada uma das melhores alunas de Direito", diz Conceição Maurício, técnica de Ação Social da UAL, que acompanhou a jovem ao longo dos quatro anos.
13 anos com uma bala na cabeça Em 2003, dois jovens de 15 anos assaltaram um carro de um guarda-noturno, roubaram uma arma, levaram-na para casa e dispararam da janela de um prédio no Bairro do Pendão, em Queluz. O projétil atingiu Felisbela na cabeça, quando brincava no pátio da escola. Viveu durante 13 anos com a bala alojada na cabeça. Em 2015, "a menina-milagre" sujeitou-se a uma cirurgia para remoção do projétil, mas diz que a sua qualidade de vida não melhorou. "Não conseguiram remover tudo, ficaram estilhaços", lamenta Felisbela que continua a queixar-se de crises epiléticas e de frequentes dores de cabeça. "Houve uma prova oral em que tive uma crise convulsiva, talvez por estar nervosa. Quando chegou a minha vez não disse nada, não tinha como dizer. Falei com o docente e ele foi muito compreensivo. A docência da Universidade é de excelência: não deixam a parte humana de lado", realça Felisbela.