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Correio da Manhã

Domingo

Eles também têm medo da doença

Ignoram sintomas. Automedicam-se. Fazem por parecer saudáveis. Discutem diagnósticos. Recusam exames. Consultam-se uns aos outros. São médicos e adoecem, tal como quem diariamente os procura em busca de alívio .
29 de Março de 2009 às 00:00
Beatriz Craveiro Lopes assume que não gosta de se sentir “fragilizada” perante colegas e doentes por ter de demonstrar sintomas de doença
Beatriz Craveiro Lopes assume que não gosta de se sentir “fragilizada” perante colegas e doentes por ter de demonstrar sintomas de doença FOTO: António Pedrosa

Nunca, até aquele momento, Nuno Montenegro tinha reparado que o tecto era tão branco. Com tantas luzes. Estranho, pensou ele, que sempre trabalhara em hospitais, escolher aquele momento para reparar nos pormenores. Estava deitado numa marquesa branca nos cuidados intensivos. Sem bata, o que já de si era anormal tendo em conta que estava no seu local de trabalho, o Hospital de São João, no Porto, onde é director de ginecologia e obstetrícia. Naquele dia, Nuno, 53 anos, era o doente.

'Preso à cama, todo monitorizado, sem poder fazer nada.' A suspeita de um enfarte do miocárdio 'foi a situação mais difícil' que enfrentou no seu relatório clínico. 'Como sou muito stressado só o estar preso a uma cama estava a tirar-me do sério. Fiz aquilo que dizemos aos doentes para não fazerem: assinei a alta por exigência e fui embora.' A lição ficou marcada na pele. 'Fiquei com a face inteira da coxa toda negra, do cateterismo [introdução de um tubo na artéria da perna], durante um mês, por não ter ficado em repouso.' A rebeldia foi pontual. 'Vacino-me contra a gripe e se tenho febre medico-me, mas quando ultrapassa a minha área procuro um especialista, não tomo decisões.' Só não resiste a abrir os exames. E a adiar check-ups de rotina onde se inclui o rastreio do cancro da próstata. 'Mas acabo sempre por fazer'.

Fernando Calais da Silva não esquece a dor 'infernal' que não passava. E o médico – que não tem médico de família – desesperava agarrado às costas. 'Fiz milhentos exames clínicos à procura do que tinha. E em cada um deles pensava: o que é que vai aparecer? O que é que eu tenho?' – conta o ex-director do serviço de Urologia do Hospital de São José, em Lisboa, de 72 anos, entretanto, já reformado. A ansiedade era tanta que nem esperava pelo envelope fechado com os resultados – discutia-os logo ali, com o colega. Em oito meses só despistaram suposições sobre a maleita revelada em Janeiro de 2007. Nada concreto. O que desesperou quem apenas se lembrava de ter tido umas gripes. 'Como nós, mais ou menos, sabemos as coisas que podemos ter, nestes casos dizemos: ‘ tenho uma coisa esquisita’. Os médicos, os seus parentes e amigos, têm sempre coisas estranhas. Que raio de síndroma será este?' Consultou especialistas do hospital, com quem lidava para resolver problemas dos seus doentes.

'Prefiro que seja um colega a medicar-me. Quando nos automedicamos há sempre uma certa emocionalidade; o melhor é perguntar a alguém de confiança e fazer aquilo que mandam.' Quando descobriu [por exclusão de partes] que tinha uma doença 'simples', herpes-zóster (conhecida por zona), ligou para um clínico amigo. 'Ouve lá, isto existe? Ele disse: existe!' – recorda. 'Fiz acupunctura, homeopatia, fiz tudo. Só não fui à bruxa. A gente faz tudo para aliviar a dor, é a dor que a gente quer resolver'. Como qualquer um.

Para se admitir que o médico tem as doenças e reacções de qualquer pessoa, é preciso um certo 'despudor'. A responsável pela Unidade de Dor do Hospital Garcia de Orta, em Almada, recorda-se de há 12 anos sentir cefaleias muito intensas, com tonturas e náuseas, e não querer deixar passar uma imagem 'fragilizada' enquanto profissional. 'Sempre que tenho dor física, a reacção é de fuga – ir para casa e não ‘contaminar’ o ambiente de trabalho', confessa Beatriz Craveiro Lopes, 57 anos. 'O profissional de saúde é um bocadinho arrogante: acha que consegue resolver os seus problemas e primeiro que admita que precisa de ajuda já percorreu a via sacra sozinho. Tem que ter uma imagem forte.' Mas contra a severidade auto-imposta por muitos clínicos, a equipa do serviço chefiado pela anestesista Beatriz Craveiro Lopes aplica técnicas de relaxamento. 'É uma equipa também com laços de afecto. Se algo parece não estar bem com um elemento, todos procuram soluções para o problema.'

CONSULTAS DE CORREDOR

Na semana passada, a gripe atacou Mário Jorge, médico de Saúde Pública no Alentejo Litoral. 'Tomei os medicamentos que tinha em casa', conta, reconhecendo o ‘pecado’, neste caso, singular da automedicação. 'Um deles estava fora de prazo', assume, envergonhado. 'Nós, os médicos, não vamos muito ao médico. Fazemos consultas de ‘corredor’, pedimos opinião uns aos outros.' Eles, os médicos, ou não dão importância aos próprios sintomas ou ficam tão preocupados que exigem procedimentos excessivos. É o que a experiência de médico de médicos diz a Mário Jorge. 'Procuram-me para dar opinião em situações que envolvem a minha área – doenças transmissíveis.' Não é fácil pois 'trazem já ideias'. Também 'pode ser complicado examinar alguém hierarquicamente superior'.

Luís Mourão, 61 anos, nunca consultou um médico. Nunca esteve doente – salve-se a gripe. Nunca fez exames. É cardiologista e nunca se submeteu a um electrocardiograma, mas sabe de cor todos os males do coração. 'Medico-me sempre porque nunca é grave. Tomo aspirina se tenho febre e antibiótico se tenho tosse.' Nesta casa de ferreiro o espeto é de pau. 'Fumo e não tenho horas para alimentação, sou capaz de não almoçar nem lanchar e só fazer uma refeição à noite, mas com os doentes tenho todos os cuidados.'

Paulo Cortes, 46 anos, assume: 'Nós, médicos, somos maus doentes.' A prática confirma a teoria. 'Oscilamos entre não nos preocuparmos nada e, se as coisas se agravam, tentamos encontrar explicações mais complexas do que aquilo que realmente temos'. Uma montanha-russa de emoções que a bata branca não facilita. 'Mas não faço consultas de rotina e faço batota com as análises, vejo logo os resultados.' Paulo é oncologista. 'Quando estou doente penso nos meus doentes e percebo o que eles sentem. Mas não é só para o mal, quando estive mais debilitado recordei os exemplos das pessoas com uma coragem imensa e tentei aprender com elas.' E medica-se. 'Até porque tenho que me curar rapidamente, as pessoas precisam de mim.'

"SÓ AGUENTEI TRÊS DIAS INTERNADO": NUNO MONTENEGRO

Quando se viu ‘preso’ numa cama do hospital que tão bem conhecia enquanto médico – desta vez, como doente – Nuno Montenegro desesperou. 'Depois do cateterismo só aguentei três dias internado, embora devesse ter ficado mais tempo a recuperar, e fui-me embora'. Suspeitava-se que o director de serviço de ginecologia e obstetrícia do São João, no Porto, tinha sofrido um enfarte do miocárdio e tinha que ficar em observação. 'Lembro-me que me sedaram, e quis saber tudo o que me estavam a fazer, mas também que pedi para não me darem medicação em demasia'. O veredicto não foi difícil de apurar: o stress é o pavor das artérias coronárias. 'Vivo a minha profissão com espírito de missão, só podia ser assim. Vivo isto quase como se fosse a minha primeira família e passo a maior parte da vida aqui dentro', descreve Nuno, de 53 anos, fumador inveterado mas adepto convicto do exercício físico. 'Não abdico dos meus quilómetros de bicicleta ao ar livre'.

"RECORRO AO SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE": MÁRIO JORGE

Quando está doente vai aos centros de saúde e hospitais públicos ou procura o serviço privado?

Por uma questão de confiança, e que tem a ver com a minha postura ética, recorro ao SNS.

E fazem-no esperar?

Fico na sala de espera. É uma experiência valiosa porque ouço as conversas e fico a saber o que as pessoas pensam do aten-dimento. Não espero muito.

Os médicos consultam-no?

Trabalho em saúde pública, doenças transmissíveis. Pedem-me opinião se suspeitam de que sofrem de alguma coisa relacionada.

"INÚMEROS COLEGAS DOENTES: PAULO CORTES, ONCOLOGISTA

Já entrou no seu consultório um colega com um problema oncológico?

Sim, tenho inúmeros doentes que são meus colegas de profissão.

Como é que um médico oncologista, sendo também colega, lida com uma situação destas?

Se nós não adoecêssemos toda a gente queria ir para Medicina. Os médicos também adoecem, são pessoas. É muito complicado lidar com isso. É difícil descrever de tão difícil que é...

Principalmente saber o que dizer...

Sim, extremamente. Mas quanto mais conhecimento a pessoa tem mais mecanismos também possui para fugir à realidade e encontrar defesas.

"CONHECIMENTO NÃO AUMENTA A ANSIEDADE": JOSÉ PAIS RIBEIRO, PSICÓLOGO

Acredita que se um médico estivesse na ignorância enfrentaria melhor a sua própria doença?

Nunca a ignorância é o melhor para enfrentar qualquer situação, incluindo um diagnóstico de doença.

Irá o médico desvalorizar os seus sintomas?

Dependerá das características da pessoa. Penso que um médico, se falarmos de doença da sua especialidade, desvalorizará o secundário e valorizará o mais importante.

Poderá ele protelar a consulta de um colega?

Se desvalorizar, não consultará um médico como qualquer outra pessoa que não vai imediatamente ao médico.

Poderia um médico tratar--se a ele próprio?

Depende. Se estamos a falar de uma doença simples, com diagnóstico claro e tratamento claro (que não seja cirurgia), poderá fazê-lo. Numa condição mais grave deverá consultar outro médico que esteja emocionalmente mais distante da situação.

Por um médico conhecer a maioria das doenças e as suas causas, pode aumentar-lhe a ansiedade?

O conhecimento não aumenta a ansiedade, ao contrário da ignorância.

A mente influencia o estado de saúde?

Claro. E a saúde influencia o estado da mente. Isto tanto se refere a aspectos emocionais como cognitivos. Pessoas intelectualmente mais elaboradas em termos cognitivos organizam melhor a informação, desenham planos de acção mais eficazes, e implementam melhor as acções. Simultaneamente lidam melhor com as emoções negativas.

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