Em entrevista à Lusa, a professora da Universidade Católica do Porto disse que em Portugal ainda há "a ideia de que é aceitável nós termos empresas que só sobrevivem se pagarem 500 euros às pessoas".
"Eu acho que isto não é aceitável", vincou, e dando como exemplo o aumento do salário mínimo nacional em negociação para o Orçamento do Estado para 2021, considerou que "não se pode, com o argumento da crise e com o argumento das dificuldades que todos estamos a sentir, deixar cair coisas como a valorização do salário mínimo, a valorização de prestações sociais", ou ainda o investimento público, especialmente na saúde e na educação.
Burocracia tem "aspetos culturais complicados de mudar"
"À partida desconfiamos. Nós, à partida, montamos regras para se alguém quiser defraudar, ser difícil. É assim que nós funcionamos", disse, em entrevista à Lusa, quando questionado sobre a desburocratização em face dos novos fundos europeus que chegarão durante a próxima década.
Para a professora da Universidade Católica do Porto, "há aspetos culturais que nestas coisas são muito complicados de mudar", pelo que "temos de tentar ir progressivamente educando-nos no sentido de termos uma atitude diferente".
O acesso aos futuros fundos europeus "tem de ser rápido", entende a académica, dado que se se demorar "um ano a aprovar um projeto de qualquer natureza, o projeto já morreu".
"Eu tenho exemplos de muitas empresas aqui na região [Porto]. Temos pequenas e médias empresas, que eu conheço bem, que tiveram de despedir trabalhadores porque tiveram projetos aprovados por fundos estruturais, mas a burocracia que era necessária para receberem algum do dinheiro fazia com que quando recebiam, o projeto já tinha morrido", relatou.
A professora universitária salientou também que "a corrupção, os compadrios, os favores" se evitam "com o máximo de transparência possível".
"Tudo tem de ser claro, a informação tem de estar disponível, ser rápida e de fácil acesso, todas as decisões tomadas têm que ser óbvias, explicadas, claras, transparentes - para poder haver uma monitorização muito grande da sociedade e por parte da economia, por parte dos agentes individuais, por parte das empresas", enumerou.
A economista considera também que sem comprometer a rapidez, deve haver "um sistema de punição a sério quando se prevarica, e aí o sistema de justiça tem que mudar radicalmente, porque não se pode estar cinco anos sem que um caso de corrupção seja decidido".
Francisca Guedes de Oliveira pede "medidas sérias" para "as pessoas perceberem que quando erram e quando pecam a coisa funciona bem, funciona rápido e funciona a sério", estimando que assim "metade dos problemas se resolvem".
Comparando a onda de fundos europeus que virá na próxima década com o período em que Portugal aderiu à então Comunidade Económica Europeia (CEE, hoje União Europeia), em 1986, a académica considera "somos outro país" e que "que estamos noutro planeta em relação a 1986".
"A sensação que eu tenho é que há uma capacitação das pessoas para uma série de coisas, que não tem a ver só com a evolução do nosso país, tem a ver com o acesso à informação, com a internet, com a globalização", considerou.
A académica deu como exemplo o programa de intercâmbio do ensino superior Erasmus, que permite aos estudantes "conhecerem as realidades, da Alemanha, da França, Polónia, Itália, o que for", que são "muito diferentes" da portuguesa.
Francisca Guedes de Oliveira entende que houve uma "aculturação" e "europeização dos nossos hábitos em muitas coisas".
Hoje, "a população está muito mais capaz e capacitada para aceitar processos céleres, fáceis", mas desde que tudo seja "feito de tal forma transparente que qualquer um de nós acede à informação, compreende a informação, denuncia e reclama se for caso disso, se achar que o deve fazer".
"De 1986 para agora, eu acho que se pararmos um bocadinho vemos a evolução a acontecer, porque acho que é verdadeiramente notável", concluiu.
Educação deve ser "um foco brutal" do investimento
A professora universitária defendeu que quer o Orçamento do Estado para 2021 quer os fundos que Portugal vai receber da União Europeia devem contemplar uma atenção "brutal" à educação, sem descartar a saúde.
"O que eu vejo de imediato é que há duas áreas que são absolutamente cruciais: a área da saúde e a área da educação", disse em entrevista à Lusa a académica da Universidade Católica do Porto.
Confessando-se uma "defensora acérrima da escola pública", a economista entende que a educação nacional "precisa de um investimento brutal a todos os níveis", e de ser "um foco brutal no Orçamento do Estado".
"Desde revisão de currículos, a infraestruturas, à maneira como se tratam os professores e se dignifica a carreira dos professores, que são umas almas santas - eu não consigo imaginar qual é o serviço que alguns dos professores fazem nas escolas públicas deste país", disse à Lusa.
A professora universitária entende que devia ser dada "uma volta de 180 graus" ao sistema educativo nacional, da pré-escolar à universidade, e com "coragem e ambição".
"Uma das coisas que eu acho que ficou claro com esta pandemia foi a desigualdade brutal no acesso às infraestruturas digitais", lembrou, pelo que "a exclusão do ponto de vista digital" é uma das áreas para as quais "se tem de olhar e não é hoje, é ontem ou anteontem".
Francisca Guedes de Oliveira entende que há "uma perceção no sentido de se achar que a dicotomia pública-privada é positiva em algumas coisas que não o é", e nesse sentido a escola pública "tinha que ter um papel muito mais valorizado e muito mais cuidado".
Como exemplo dessa dicotomia, a economista apresentou a não gratuitidade dos manuais escolares para alunos do ensino privado, cujas "vozes discordantes" são "completamente incompreensíveis".
"E isso só me leva a crer que há de facto uma noção muito errada do papel da escola pública", cuja valorização "tem que ser tal que pessoas que têm os filhos no privado queiram ter os filhos na escola pública".
No entender da académica, "a escola pública só funciona bem, como elevador e como algo que ajuda à mobilidade social se lá estiver toda a gente, ou uma variedade muito grande de pessoas", e que tal como no Serviço Nacional de Saúde, se "for só para quem não tem dinheiro para pagar o privado, a qualidade vai piorar dramaticamente".
Para Francisca Guedes de Oliveira, estar no ensino privado "é um privilégio, porque tipicamente as escolas privadas, do ponto de vista de infraestruturas, de capacidade de acompanhamento dos miúdos e de uma série de outras coisas têm condições que as escolas públicas não conseguem ter".
"Independentemente de ser uma opção individual de tirar os filhos da escola pública e pô-los no privado, como cidadã, tenho que continuar a acreditar que tudo o que for feito para potenciar a escola pública, para beneficiar quem opte pela escola pública, é para o bem de todos nós, porque é aquilo que vai permitir depois, efetivamente, a mobilidade social", disse.
A escola pública de qualidade tem "um clima que beneficia todos e que trata todos da mesma maneira, como não poderia deixar de ser", puxando também "o nível e o ambiente para exigência académica e capacidade de aprendizagem, que é o que é preciso".
"Os pais não podem ter a sensação que têm que tirar o filho da escola pública porque se tornarmos a confinar e tornarmos a ter que partir para o 'online', a escola pública não dá resposta. Isso não pode acontecer", vincou.
Quanto à saúde, e apesar de considerar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) "inacreditável, pela positiva", a pandemia de covid-19 "expôs a fragilidade que o sistema tem".
"Na perspetiva de utente, acho que há aqui uma série de coisas que têm de ser olhadas, quer do ponto de vista de infraestruturas físicas, do ponto de vista de recursos humanos, e do ponto de vista da relação público e privado, que eu acho que há imensas confusões que tinham que ser resolvidas", referiu.
A economista crê que o setor da saúde "tem de continuar a contar com o privado", questionando "algumas medidas que foram tomadas nesse sentido".