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António Sousa Homem

Uma história de amor para todos os outonos

O retrato de Svetlana Davydovna é uma herança que recebi do tio Alberto.

António Sousa Homem 4 de Outubro de 2015 às 00:30

Nesta altura do ano, regular como um pêndulo afinado em Vila Nova de Famalicão, o tio Alberto abandonava São Pedro de Arcos – entre os bosques que se preparavam para o Outono, lá nas altitudes limianas – e partia para a sua grande viagem anual. A família nunca queria saber mais do que a data aproximada do regresso, para não ser apanhada em falso; todos sabíamos que o tio Alberto tinha uma outra vida em que não participávamos e que a existência dessa outra vida era uma condição da sua própria sobrevivência. Éramos igualmente cuidadosos na altura em que reentrava em Portugal, depois da longa viagem de Genebra até aos portões de Tui e Valença.

Passados tantos anos desde as suas derradeiras viagens – quarenta? –, sinto falta delas como uma derradeira prova da existência de Svetlana Davydovna, a beleza exótica e melancólica de Astrakhan que cativou o tio Alberto até à morte e, como acredito, muito para lá dela.


O dr. Paulo, que apareceu para o jantar de sábado (esqueci-me de mencionar que a sua presença, por convite da minha sobrinha Maria Luísa, tem vindo a tornar-se um agradável hábito, embora ocasional, nos serões de Moledo), reparou na sua fotografia numa das paredes da biblioteca – designação que se atribui, na família, à divisão onde os livros e os álbuns de fotografia se acumulam neste eremitério – e quis saber de quem se tratava. "Uma princesa russa", esclareceu Maria Luísa.


O dr. Paulo pareceu meditar (estado em que parece cair algumas vezes) no assunto sem se atrever a mais perguntas. Mas, para que a família não caísse no albergue nostálgico do czarismo, Maria Luísa acrescentou que isso não era bem verdade – e que o título de princesa fora atribuído pela tia Benedita, a matriarca miguelista de Ponte de Lima. Para todos os efeitos, o retrato de Svetlana Davydovna é uma herança que recebi dos bens do tio Alberto; conservo-o como prova de que o amor existe e de que a morte, a distância, a solidão e a própria provação do amor são coisas nobres e não apenas produto da imaginação romântica.

O olhar suave e os olhos escuros de Svetlana inspirariam um escritor, mas o tio Alberto raramente falava do assunto. Nessa altura não havia internet nem telenovelas pela noite dentro; o amor era um caminho tortuoso, discreto e providencial entre São Pedro de Arcos e as margens do lago de Genebra, perto do qual está sepultada.
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