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Correio da Manhã

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Carlos Fernandes

A língua, quarto elemento fundamental do Estado

A Assembleia da República e o Governo não têm legitimidade para legislar sobre a língua portuguesa, que agora é a língua oficial de nove Estados soberanos, e não apenas de Portugal e do Brasil.

Carlos Fernandes 18 de Novembro de 2016 às 21:11

Desde há muitos anos que eu ando ensinando que a língua faz parte muito relevante da estrutura essencial do Estado – ela é sine qua non da respectiva existência –.

De facto, não é sequer concebível um Estado sem língua, como o não é sem população, território, e um certo ordenamento jurídico-político. Não conhecemos nenhum tratadista que dê, como nós, a devida relevância à língua na estruturação do Estado, o que é deveras estranho, pois, nem mesmo um Estado de cegos ou de mudos poderá existir sem língua, para falar, escrever ou gesticular.

Assim, para mim, são quatro, e não apenas três, os elementos constitutivos essencialmente de um Estado, sendo, a meu ver, a língua o prècípuo e mais relevante de todos. Na verdade, nada se faz sem a língua, transitória ou permanentemente, quer interna quer internacionalmente.

E até acontece que, hoje, o predomínio da língua é, mais do que nunca, base de revoltas políticas, e da criação de novos Estados. Veja-se, v.g., o problema basco, catalão e galego, em Espanha, russo-ucraniano no leste da Ucrânia, tragicamente precedido há quase um século por certas ambições de A. Hitler, em que os territórios e as populações vinham por causa da língua.

Isto, para mim, leva à compreensão da frase de Fernando Pessoa, quando disse: A minha pátria é a língua portuguesa. E leva também a que eu, pessoalmente, tente, tanto quanto puder, manter o linguajar português tradicional fora das contingências políticas governamentais e dos interesses inconfessáveis daqueles que contam com a sua mudança, boa ou má, não interessa, e quanto maior melhor, porque ela fomenta novos livros escolares e dicionários, negócio bilionário em Portugal e no Brasil, e sê-lo-á, a bem curto prazo, nos novos Estados da língua oficial portuguesa.

Portanto, a língua é dos povos, estando acima das limitadas competências – porque não são ilimitadas – dos Governos, Parlamentos, Chefes de Estado e Tribunais.

Sendo isto assim, os Governos não têm competência, quer dizer, legitimidade legal, para andarem a jogar com a língua portuguesa, tanto mais que ela é, agora, de nove, e não apenas de dois Estados (Portugal e o Brasil) – convém não esquecer isto daqui em diante –.

Quando muito, eu poderia admitir que, em caso de verdadeira necessidade, se alguma vez se verificasse – o que não prevejo em qualquer Estado independente –, a população, através de um referendo maioritário em relação a essa população, e não apenas aos votantes, pudesse mexer na língua. Nunca por lei ou decreto-lei, pois todos sabemos como as decisões políticas são motivadas, e a ligeireza com que frequentemente o são — de qualquer modo, são sempre temporárias, inconstantes, de valor muito relativo, e, frequentemente, interessadas, e pomos de parte imposições estrangeiras —.

Como conclusão lógica, sou contra acordos ortográficos internacionais (que, aliás, ninguém mais pratica, apesar da respectiva escrita ser verdadeiramente complexa (inglesa, francesa, etc.). No entanto, a prática portuguesa tem sido outra – a dos acordos por contemplação com o Brasil, não obstante o seu rotundo fracasso, mexendo agora na língua com uma ligeireza intolerável, com o errático e inobservávelargumento de uma almejada uniformização, que, a meu ver, é ineficaz, por contrária à natural evolução das coisas –.

As práticas governamentais inglesa, americana e francesa, correspondem a este meu entendimento quanto à língua.

De facto, ninguém pode, nem deve, legitimamente, parar o evoluir do linguajar próprio de um povo independente. Isto é da História (vejamos as línguas novilatinas, o grego moderno, o turco, etc., e tem que ver com a independência, soberania, e igualdade jurídica dos Estados, internacionalmente, factores conjugados com eventuais etnias diferenciadas e correspondentes línguas ou dialectos).

Em todo o caso, para mim, o elementar bom senso leva a que, não se deixe ao primeiro quidam anfibológico que vá para a governança o poder de decidir, contingente e arbitrariamente, conforme os seus gostos e interesses, confessáveis ou inconfessáveis, como devemos falar ou escrever a nossa língua – a língua da Nação portuguesa, da Pátria, e não dos políticos mais ou menos cultos –.

Por conseguinte, a meu ver, os Governos, através das Academias (das ciências, linguísticas, ou outras adequadas), apenas poderão, e talvez devam, aconselhar a pronúncia e escrita do português, mas não impô-las, e muito menos por acordos internacionais, já que, estes acordos, ao contrário do que certos optimistas crêem, são sempre um compromisso, necessário para chegar a um consenso entre todas as partes envolvidas, e não apenas entre algumas, e, por isso, nunca são a melhor solução em abstracto, seja qual for o problema, porque se não houvesse desacordo inicial, o eventual acordo nunca teria lugar.

Ao contrário do que alguns pensam, eu não vejo mal nenhum em deixar o Brasil seguir o seu caminho, se assim o desejar, com os fatos, exceções, seções e batismos que quiser, porque, a meu ver, já não tem conserto, e, por isso, só aceitará o português abrasileirado e não o nosso. Mas devemos tudo fazer para manter a uniformização da escrita que os novos Estados saídos recentemente de Portugal adoptaram. Depois, que sigam também o seu caminho, como a sua evolução histórico-cultural ditar. Mas, entretanto, não os obriguemos, em benefício do Brasil, a estropiar o português escrito e falado, desfazendo a uniformização ortográfica que lheslegámos e eles aceitaram.

Realmente, quando nos lembramos – e convém nunca o esquecer – da bela uniformização existente entre Portugal e os novos Estados de língua oficial portuguesa,e assistimos, agora, à confusa diversidade actual, com os grandes Estados de Angola e Moçambique a recusarem tanto o "Acordo Ortográfico" de 1990 como o 2º Protocolo Modificativo (que, a meu ver, é criminoso, ao consagrar a desuniformização), é, como tenho dito, de gritar bem alto aqui del Rei, mesmo em República –.

Resumindo e concluindo, reiteramos que, em qualquer Estado, logicamente, o primeiro elemento estrutural é, a meu ver, sem dúvida a população; mas, com ela indissociável, vem a língua, que, portanto, é consubstancial à população. Só depois vem o território em que essa população é soberana; e, finalmente, a sua ordem, isto é, a sua organização jurídico-política.

Ora, se atentarmos bem no que dispõe a nossa Constituição actual, creio não ser forçado dizer que nela se consagra a minha concepção estrutural de um Estado (população, língua, território e ordenamento jurídico-político).

Na verdade, logo nos três primeiros artigos se dá, não só a primazia, mas a própria soberania, à população: no artigo 1º, diz-se que a República Portuguesa é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular; no artigo 2.º, diz-se que a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular; e, no artigo 3º, diz-se que a soberania una e indivisível, reside no povo, .... Portanto, o soberano é o povo, a nação, que exerce a sua soberania através do Estado e dos quatro órgãos executivos dessa soberania. Isto é, é o soberano, o povo, que se impõe aos seus órgãos de exercício da sua soberania, e, consequentemente, não estes ao povo – obviamente, na prática, isto, por enquanto, é quase só teoria, mas é importante acentuar que tal má prática é um desvio aos princípios básicos, tanto que, quando esse desvio acontece e os Tribunais funcionam, faz-se valer a sua inconstitucionalidade –.

E, como acentuámos supra, a língua é consubstancial ao povo, que absolutamente nada pode fazer sem ela – nem um Estado de cegos ou de surdos, reiteramos, poderia existir sem uma língua, para falar, escrever, ou gesticular –. E, pelo disposto no artigo 11º, nº 3 da Constituição, a nossa língua oficial é o Português.

Por outro lado, a Constituição diz qual é o território português, e impõe que dele não se pode dispor – é inalienável, mesmo em parte (a não ser em correcçãode fronteiras, v. artigo 5.º, o que não é alienar coisa nenhuma, porque a fronteira não está fixada).

Porém, nada equivalente se diz, expressamente, quanto à indisponibilidade em relação à população e à sua língua, mas, sendo a população o soberano e a língua a ela consubstancial, seria, a meu ver, manifestamente absurdo que se permitisse a sua disponibilidade, mesmo só em parte, porque, quer uma quer a outra são tanto elementos essenciais estruturais do Estado como o é o território, e até o precedem, logicamente – como já reiterámos, nada, absolutamente nada, se pode fazer sem a língua, mas poderia dispor-se dela, enquanto do território não!? –.

Demais, não há realmente nada na Constituição que permita aos órgãos de soberania (em nome do povo, portanto) dispor da sua língua – o Português –. Antes, pelo contrário, ao definir as tarefas fundamentais do Estado, no seu artigo 9º, alínea f), impõe-se-lhe o ensino e a valorização permanente, e defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesao Português –.

Ora bem, que Português? É agora de notar que o Português, como língua, referido no nº 3 do artigo 11.º da Constituição, é, e só pode ser, aquele em que a mesma está escrita. E acontece que tal só pode ser o resultante da Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945, com a pequena alteração, quanto aos acentos, fixada pelo Decreto-Lei n.º 32/73, de 6 de Fevereiro.

Isto é, como veremos, muito relevante.

O instrumento do acordo ortográfico a que se chegou com o Brasil, assinado em 10 de Agosto de 1945, tendo em atenção as conclusões unânimes da Conferência Interacadémica de Lisboa, constituída pelas delegações, brasileira (Pedro Calmon, Ruy Ribeiro Couto, Olegário Mariano, e José de Sá Nunes) e portuguesa (Gustavo Cordeiro Ramos, José Maria Queiroz Veloso, Luiz da Cunha Gonçalves, e Francisco da Luz Rebelo Gonçalves), sob a presidência de Júlio Dantas, levaram o Governo português a, pelo Decreto n.º 35.228, de 8 de Dezembro de 1945, aprovar o acordo assinado a 10 de Agosto de 1945, correctamente designado por Convenção Ortográfica Luso-Brasileira, que, nos termos expressos no seu artigo 4.º, entrou em vigor na data da respectiva publicação, para ser cumprida a partir de 1 de Janeiro de 1946, deixando-se, contudo, ao Ministro da Educação Nacional determinar, por portaria, os prazos durante os quais poderiam continuar a ser adoptados, no ensino, os livros escolares já publicados e aprovados à data daquele Decreto.

Em 1947, a Academia das Ciências de Lisboa publicou um Vocabulário Ortográfico Resumido da Língua Portuguesa.

Pelo Decreto-Lei n.º 32/73, de 6 de Fevereiro, foi feita, pelo seu artigo único, a alteração seguinte: São eliminados da ortografia portuguesa os acentos circunflexos e os acentos graves com que se assinalam as sílabas subtónicas dos vocábulos derivados com o sufixo mente e com os sufixos iniciados por z.

Isto tudo é o que, desde então, tem vigorado em Portugal e antigo Ultramar português, como ortografia oficial portuguesa, e, a meu ver, ainda vigora, por falta da sua revogação.

O facto de o Brasil ter denunciado a Convenção de 1945, não teve qualquer influência na ortografia oficial portuguesa, porque a sua vigência em Portugal nunca dependeu da sua vigência no Brasil.

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