O superior interesse da criança é o direito de não continuar a sofrer os efeitos do crime .
caso em que o Hospital de Santa Maria teve de decidir se os pressupostos de uma interrupção da gravidez de cinco meses se verificavam, ou seja, se havia elevados riscos para a saúde física ou psíquica de uma menina de doze anos que foi vítima de violação pelo padrasto, suscita questões de elevada complexidade. Este caso cruza o chamado aborto ético, com origem numa violação, com o aborto terapêutico.
Parece evidente que a violação reiterada da criança em ambiente doméstico agrava as sequelas psíquicas da gravidez precoce e da maternidade. Mas não comportará a interrupção da gravidez numa fase adiantada riscos graves para a saúde física e psíquica da mãe-criança? Por outro lado, a par destas consequências, colocam-se questões éticas que envolvem o valor da vida da criança em gestação numa fase adiantada.
Como em todos os conflitos de valores, nenhuma solução será completamente boa e subsiste sempre uma certa insatisfação moral. No entanto, em caso nenhum pode ser desconsiderada a proteção desta menina, que foi vítima de repetidas violações. Assim, o Direito não pode pretender que o seu desenvolvimento para a idade adulta seja determinado por um crime e que seja esse crime a comandar a sua vida futura.
Não querem dizer estas considerações que a única solução boa do conflito seja abortar, mas sim que deve prevalecer o superior interesse da criança, num sentido próximo do que foi enunciado por Maria do Céu Machado. A sociedade não pode impor a subjugação aos efeitos de um crime de uma vida que tem o especial dever de proteger, como se acabasse por admitir que os efeitos da violação devem subsistir na vítima.
O Estado não pode impor essa servidão a uma mulher e muito menos a uma criança. Mais do que as invocadas razões de saúde psíquica, está em causa a reposição da dignidade da mulher violada. O superior interesse da criança é o direito de não continuar a sofrer, contra a sua vontade, os efeitos do crime. A criança não pode ser transformada, em nome do direito à vida, num mero suporte biológico de outro ser humano.