Num programa de televisão, uma criança foi ridicularizada pelas suas orelhas.
A Escola protestou, e bem, contra os efeitos devastadores da "brincadeira" na criança, que tem, aliás, necessidades especiais de ensino. Mas é a lógica do programa que merece ser discutida, para além deste caso. É de rejeitar um concurso que ponha em causa o valor de cada pessoa e atribua ao vencedor o papel de produto perfeito.
Nestes programas, pretende-se escolher alguém que reúna os talentos que interessam ao mercado. Assim sucede nos concursos "artísticos", que utilizam e fazem sofrer as pessoas: primeiro, os vencidos; depois, com frequência, os vencedores. No filme ‘Bellissima’, Visconti retrata o sofrimento amargo de uma mãe (Anna Magnani), que não consegue tornar a filha um produto apreciado pela indústria cinematográfica.
Num momento em que Portugal não consegue formular metas de futuro para os jovens, não tem sentido procurar ídolos apetecíveis para o mercado. Em vez disso, devemos procurar novos caminhos e soluções que reforcem a participação dos jovens na vida social, contribuam para o seu bem-estar, promovam a sua realização pessoal e lhes permitam revelar os seus talentos, vergando a dura inflexibilidade do mercado.
Se as orelhas grandes de uma criança se tornam o tema privilegiado de um programa de televisão, então estamos perante um enorme deserto cultural. Grave, no entanto, é a falta de alternativas a estes mercados que vivem dos estereótipos. E também é particularmente grave a ausência de programas e atividades que coloquem as pessoas no papel de participantes e não de meros instrumentos do divertimento alheio.
O Direito não pode regular todas as situações sociais, embora não possamos menosprezar, pelo menos em termos de responsabilidade civil, os danos morais infligidos numa criança de modo tão gratuito. A criança ofendida merece que lhe digamos que as orelhas grandes são parte da sua identidade e a tornam especial. Tão especial, que impedem que ela se torne um produto num mercado de oferta cultural limitada.